A questão da alienação fiduciária nos contratos de financiamento habitacional para mutuários de baixa renda tem sido tema de intensos debates. Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AREsp 1.776.983-SP, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, proferida em 19 de setembro de 2023, confirmou a legalidade da inclusão dessa cláusula nos contratos celebrados por empresas públicas estaduais criadas para executar a política de habitação, como é o caso da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).
A decisão também esclareceu que, em caso de inadimplência, o leilão público dos imóveis é um procedimento legítimo e previsto em lei. Vamos entender melhor essa decisão e seu impacto no contexto das políticas habitacionais no Brasil.
O Que É a Alienação Fiduciária?
A alienação fiduciária é um tipo de garantia que se aplica a diversos tipos de contratos, inclusive os de financiamento habitacional. Nessa modalidade, o mutuário (fiduciante) toma um empréstimo para a compra de um imóvel e, como garantia de pagamento da dívida, transfere a propriedade do bem para o credor (fiduciário). A propriedade é resolúvel, ou seja, volta ao nome do mutuário quando a dívida for quitada integralmente.
Se o mutuário não cumprir com suas obrigações de pagamento, o credor pode consolidar a propriedade do imóvel em seu nome e promover a venda do bem, geralmente por meio de um leilão, conforme prevê a Lei nº 9.514/97.
O Contexto do Caso: CDHU e a Cláusula de Alienação Fiduciária
A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) é uma empresa pública estadual cuja principal função é executar a política habitacional do estado, facilitando o acesso à moradia para famílias de baixa renda. Nos contratos de financiamento habitacional firmados pela CDHU, há a inclusão da cláusula de alienação fiduciária, que permite ao credor consolidar a propriedade do imóvel e vendê-lo em caso de inadimplência.
A inclusão dessa cláusula foi questionada judicialmente pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que ingressou com uma ação civil pública argumentando que essa prática seria incompatível com a política habitacional, por ser prejudicial às famílias de baixa renda. A Defensoria alegava que o procedimento de execução extrajudicial e leilão dos imóveis restringia o direito de defesa dos mutuários, além de abrir espaço para especulação imobiliária.
Os Argumentos da Defensoria Pública
A Defensoria Pública pediu que a CDHU fosse proibida de incluir a cláusula de alienação fiduciária nos contratos habitacionais, assim como de realizar leilões dos imóveis dos mutuários inadimplentes. Entre os argumentos apresentados, destacam-se:
- A cláusula de alienação fiduciária comprometeria a política habitacional ao facilitar a remoção de famílias de baixa renda de suas casas.
- O leilão extrajudicial dos imóveis, sem a devida intervenção judicial, violaria o direito de defesa dos mutuários.
- A política habitacional deveria priorizar a permanência das famílias em suas moradias, evitando o despejo em situações de inadimplência.
A Decisão do STJ: A Legalidade da Alienação Fiduciária
O caso foi levado ao STJ, que rejeitou os argumentos da Defensoria Pública e manteve a validade da cláusula de alienação fiduciária nos contratos da CDHU. A Primeira Turma do Tribunal, sob a relatoria do Ministro Gurgel de Faria, decidiu que não há qualquer ilegalidade na prática da alienação fiduciária, mesmo nos contratos habitacionais voltados para pessoas de baixa renda.
A decisão se fundamentou principalmente na Lei nº 9.514/97, que regula a alienação fiduciária de imóveis. O art. 26-A dessa lei, alterado pela Lei nº 14.711/2023, permite expressamente que financiamentos habitacionais utilizem a alienação fiduciária como garantia. O STJ ressaltou que o procedimento de execução da garantia é previsto na legislação e que o leilão dos imóveis inadimplentes não fere qualquer dispositivo legal.
Além disso, o Tribunal observou que a inclusão da cláusula de alienação fiduciária é uma prática que, ao contrário do que alega a Defensoria Pública, contribui para a sustentabilidade do sistema de financiamento habitacional. Sem essa garantia, as empresas públicas como a CDHU poderiam enfrentar dificuldades em manter o equilíbrio financeiro de seus programas habitacionais, o que prejudicaria o próprio acesso à moradia de novas famílias.
A Consolidação da Propriedade e o Leilão Extrajudicial
Um dos pontos mais sensíveis da decisão diz respeito ao leilão extrajudicial dos imóveis em caso de inadimplência. Conforme estabelecido no art. 27 da Lei nº 9.514/97, uma vez consolidada a propriedade do imóvel em nome do credor, este tem o prazo de 60 dias para promover um leilão público para alienar o imóvel.
A Defensoria Pública argumentava que o procedimento de leilão extrajudicial feria o direito de defesa dos mutuários, pois não havia a intervenção do Poder Judiciário. No entanto, o STJ rejeitou essa tese, afirmando que o procedimento é legítimo e previsto expressamente na legislação.
O Tribunal destacou que o leilão extrajudicial é uma medida extrema, utilizada apenas em casos de inadimplência grave, e que o sistema legal oferece garantias suficientes aos mutuários, como a notificação extrajudicial prévia e a possibilidade de purgar a mora antes do leilão.
A Autonomia das Empresas Públicas
Outro ponto importante da decisão foi o reconhecimento da autonomia da CDHU em relação ao Estado de São Paulo. A Defensoria Pública havia incluído o Estado como réu na ação, alegando que ele seria o responsável pela política habitacional. No entanto, o STJ decidiu que o Estado de São Paulo não deveria figurar no polo passivo da demanda, pois a CDHU, como empresa pública, possui personalidade jurídica própria e autonomia administrativa.
Essa autonomia permite à CDHU adotar medidas para garantir a sustentabilidade de seus programas habitacionais, incluindo a inclusão de cláusulas de alienação fiduciária nos contratos de financiamento.
Conclusão: A Legalidade da Alienação Fiduciária em Financiamentos Habitacionais
A decisão do STJ no AREsp 1.776.983-SP é um marco importante para o direito habitacional no Brasil. Ao confirmar a legalidade da cláusula de alienação fiduciária nos contratos de financiamento celebrados por empresas públicas como a CDHU, o Tribunal reforçou a validade dessa garantia, essencial para a viabilidade econômica dos programas de habitação popular.
O leilão extrajudicial dos imóveis inadimplentes, previsto na legislação, foi considerado uma medida legítima e necessária para garantir o funcionamento do sistema de financiamento habitacional. Embora a Defensoria Pública tenha argumentado que essa prática prejudica os mutuários de baixa renda, o STJ entendeu que a alienação fiduciária é uma ferramenta importante para manter o equilíbrio financeiro das empresas públicas e assegurar a continuidade dos programas de moradia popular.